Receber de quem não tem
Faz por esta altura um ano que tive a minha primeira experiência de apoio de rua aos sem abrigo. A oportunidade surgiu em jeito de convite por parte de alguém que me conhecia e sabia a partida que este era o tipo de actividade que me faria vibrar, o que de facto se veio a confirmar.
Juntei-me então a uma CVX (Comunidade de Vida Cristã) do CREU-Il (Centro de Reflexão e Encontro Universitário Inácio de Loyola), que um domingo por mês se junta para fazer a ronda dos sem abrigo do Porto distribuindo pequenos sacos com pão, fruta, água , a parte o aconchegante copinho de leite quente e agasalhos.
Caí naquele grupo literalmente de pára-quedas, sem conhecer quase ninguém, sem nunca ter feito nada tão arrojado, mas estava mesmo entusiasmada e ansiosa, queria mesmo ver de perto como era lidar com eles, que tipo de pessoas iria encontrar…
Quando me fui encontrar com eles já era tarde da noite, o grupinho do Centro Universitário, era de pessoas bem dispostas e calorosas e puseram-me logo a vontade. Encontrei alguns a aquecer o leite, outros a porem os saquinhos com comida na carrinha. Em gestos de simplicidade destes é fácil perceber como tudo se torna mais agradável quando há um sentido de partilha e serviço que é comum a todos os membros do grupo.
Partimos finalmente para uma noite feliz.
A viagem era animada, o trajecto pelo que percebi era o mesmo de sempre. E comecei aos poucos a perceber a dinâmica do grupo.
A primeira paragem lembro-me, foi num viaduto, não posso precisar em que zona, era tarde e também não sou uma grande conhecedora da cidade.
Como era só uma pessoa não saiam todos. Eu saí, queria ver, perceber como se fazia. Fui então discretamente, meia escondida atrás de quem sabia.
Era um senhor ,estava debaixo de uns cobertores, deitado, parecia estar a dormir, mas despertou ao ouvir a voz do rapaz que seguia a minha frente, devia ter pouco mais que 50 anos, não parecia doente e falou bem connosco, aceitou o que trazíamos, gracejou quanto a agua, segundo ele fazia-lhe mal, já não estava habituado. Contou-nos a sua história, pelo menos a parte que nos deixava mais curiosos, trabalhava como sapateiro e ganhava um ordenado mínimo, não resisti a perguntar, parecia não fazer sentido o discurso. Sem o mínimo embaraço explicou que o que ganhava não era muito e o vício tinha de ser mantido, tinha de comprar álcool…Senti um baque no coração, como se um novo mundo se estivesse ali a descobrir à minha frente. A cada pergunta surgia uma resposta ainda mais confirmatória.
-Mas o que ganha não da para um quartinho? – perguntei, tinha de perceber.
Sim, afinal chegava, mas o vicio…
Da tanta vontade de explicar, de ajudar, de perceber que história de vida estará por detrás de escolhas assim…viver na rua por opção… Mas seria uma opção? Se calhar não, o vício é uma doença…ou não?
Continuamos a viagem, íamos partilhando ideias, dúvidas, mas sempre com muita alegria, uma alegria que nem percebia bem de onde vinha, mas estava muito presente.
As vezes parávamos em locais onde estavam grupos maiores. Na sua maioria são simpáticos, conversadores e animados e assim torna-se mesmo divertido, entre uma piada e outra vamos fazendo perguntas sobre a vida, uns respondem bem outros fogem delicadamente ao assunto e percebemos então que aquela história ficará para uma outra oportunidade.
Podia contar todos os diálogos que tive nessa noite, tenho-os na minha memoria, todos como pequenos tesouros que fui colhendo e saboreando nos dias, nos meses seguintes…
E agora percebo que naquela noite dei muito pouco em troca destas memórias daqueles encontros, pois cada um deles foi uma oportunidade de amar mais, de servir mais…E essa riqueza ficou comigo, cá dentro.
Se em cada um daqueles rostos conseguirmos ver mais do que alguém carenciado, uma vida que naquele momento nos oferece uma oportunidade única de amar…Então iremos receber a consolação única de perceber com o coração o que é receber de quem aos olhos do mundo nada tem para oferecer.
1 Comments:
cause you have diamonds inside! Ben Harper rules!:P e tu tb
bj miuda
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